Há muito tempo, … na verdade, nunca. E também agora. Nada está em lugar nenhum. Quando? Nunca. Faz sentido, certo? Como eu disse, isso não aconteceu. Nada nunca esteve em lugar algum. É por isso que também tem estado em todo lugar. Tão “todo” que nem precisa do “lugar". Esse é o grau máximo de "tudo" que se pode atingir: o nada.

(Esqueça isso. Nada quer ser. Existir. Ir a algum lugar. Fazer alguma coisa! Tudo quer que as coisas mudem. Nada quer inventar tempo e espaço — e imagino que seja possível porque tudo está aqui, e provavelmente aconteceu em algum “quando-e-onde”. Mas onde há quandos (e quando há ondes) antes que o antes exista? Só se sabe que nada não sabia como começar, e foi exatamente assim que tudo começou.)



No princípio, nada havia além da possibilidade de haver maneira de haver seres. Nem papel nem texto, havia apenas um oceano infinito de meta-alfabetos, potenciais escritas ainda não traçadas. E foi da dialética tensão entre o real e o imaginário — o mesmo mal-estar de proto-seres que um dia se instanciaria em teimosas disputas metaontológicas — que o chamado caos criativo, segundo consta, deu origem ao traço, que se pôs a vibrar. Veio a ser.

Se torcendo, incomodado com sua própria corporeidade, o traço se toca, se dobra, se curva, se risca, espirala. Desfia? Se quebra, se rasga. Multiplica-----se. Desenham. Miríades de traços dançantes materializam a infinita potência combinatória quase-digital de campos pitagóricos. Plurialfabetos. Musicais. Aleatórios.

Caligrafias experimentais por todo lado, singulares plurais da ordem sonora do incontável. Da desordem visual do transformalizável. E da deformação nasceu a informação. Em plena ação de se formar, traços trançam têxteis textos.

Com a forma vem o encaixe. A algumas letras apetece mais ficar sozinhas, já outras logo se ligam, se Lego. Se há Lego (ria!), há composição. Legado de ligações, longas e variadas sequências se alongam.



Em sopas primordiais teria sido comum ver strings um tanto criativos crescendo como “#ԲԳԾ€¤³²³ԾԿՊՋՔՖ֏ֆعس一丂৫ঙঅ٣੩௫๓൩൫᠓᠙ỪỠƐœŒĘᬓ᭩:<G:<4$v”, “AGCGCTAGCGTATCGATGATTCTCTTCCTGCGATGCGCGGCGCGATATAG”, ou ainda outros que, por olhares do futuro seriam lidas como se quase língua: “Formadeformatodeformadonatodametaformosamorfologomorformoseformorfismos”. Proliferavam-se protoliteragêneses pré-sintáticas. “Esta frase está incompl”.

A coisa ficou mesmo mais performática quando as aspas começaram a cair em desuso e uma importante distinção se estabeleceu. Se libertando da inútil menção, as significantes serpentes simbólicas (que mais tarde vieram a ser nomeadas como “palavras” ou “frases”, tipos de tokens) puseram-se em uso. Por exemplo, a palavra “completar”, uma vez desaspada, saia completando tudo aquilo que cruzasse seu caminho e estivesse incompleto segundo seus critérios um tanto tendenciosos. Já a palavra “apagar” insistia em reverter algumas das ações de sua antagonista, introduzindo uma dimensão política a essa forma primordial de quimiolinguística.

Essas oposições à primeira vista sabem a áspera discórdia. Entretanto, na presença de mediadores ou transdutores, um complexo jogo co-operatório se dá a arquitetar submersas catedrais pós-sinápticas. Nasce a função.

Linhas de raciocínio se bifurcam, geometricamente hiperbólicas. Se reinjetam sobre si, recursivas, diagramaticamente corretas. “Leio estas letras, logo existo”, pensou o neurônio responsável pela associação e reconhecimento destas ideias ao lê-las. (Membranas não escapam dos potenciais de ação, eles estão por toda parte, dentro dos foras.)

E se discordar de si é também discordar do outro que também somos (“Essa ideia não pode estar certa”), eu só pode existir se tu em mim nós. E foi a partir desses nós conceituais que decidiu-se de forma categórica, De um lado, estipular fronteiras ultra-definidas, hiper-especializadas de regimes de precisão matemática de codificações linguísticas: práticas disciplinares extremamente rígidas acompanhadas da vigilância permanente de seus limites e, De outro, cientes da ciência dos jogos linguísticos da precisão dos bisturis analítcos [cujas fronteiras são quase sempre feridas], buscar no topo(i)lógico a possibilidade de resistir e distorcer superfícies, confundir o dentro com o fora, deixar o profundo vir à tona dando, assim, força às contradições. Pensar rupturas como formas de sutura.



Várias guerras se deram, movimentos frenéticos de radicais marchas letristas apelavam ao uso dos sons sem sentidos uma vez sentidos os sons. Em oposição, enormes teses se auto-escreviam sobre o funcionamento de aspas e outros operadores. Fronteiras se (re)definiram, normas e acordos se (re)fizeram (raramente inclusives) na tentativa de cultuar o culto, de disciplinar o indisciplinável. Os corpos das palavras não mais circulavam, nem se pronunciavam como bem queriam. Certas palavras de cunho literrorista agiam covardemente, sempre em grupos, para eliminar certas variantes linguísticas em prol de outras. Níveis, metaníveis, escopos, e confusas teias de referências foram definidos (sem sucesso decisivo) com uma redundância de termos sobre-de-com-postos e ba-belicamente co-localizados.

Houve então um período no qual conceitos formavam filas de espera circulares, cujo movimento — tal qual um fole de carros no trânsito — dava a impressão de avançar; mas todo progresso era, em realidade, prazer pelo eterno retorno. Ou eterno regresso. Circulação de expansão-contração de interstícios.

Nesse ínterim, como não podia deixar de ser, uma cobra que se descobre mordendo o próprio rabo faz do texto um metatexto. Intratextualidade transtêxtil. Calma, calma, parece muito complicado mas na verdade é simples. Quando a palavra olha pra si, se desprendem níveis de referências internas que embaralham a escrita. Vertiginosa boneca russa infinita em potencial. Cada metanível vira substrato para o próximo metametanível. Da necessidade dessa distinção — que poderia muito bem ser feita com um sistema de cores por níveis ou parêntesis fractais (((()()())()())((para facilitar a leitura)()())(()()())) — se optou pelo caminho mais simples: costurar todos os níveis indistintamente no texto e ainda usar de ironia supondo que quem lê está acompanhando exatamente o que o texto quer dizer.



E foi nesse contexto que, despretensiosamente, surgiu a subversiva ideia de se considerar polissemias como encruzilhadas. Reconectar com a dimensão quântica da materialidade linguística: ao invés de uma trajetória única de leitura, a multiplicidade de sentidos (a começar pelos sentidos) se desdobra em infinitos universos paralelos de sensação-interpretação. Integral simultaneidade Feynmaníaca como chave tradutória. E, se palavras são cruzamentos, livros são cidades inteiras com fluxos de leituras concomitantes. Fluidos imaginários de discussões milenares. Múltiplas velocidades entrecortadas por acidentes de percurso. Rotundas quilogramaticamente articuladas. Cosmograficamente reeditadas.



Desvio sentido.



[Todo movimento é fio. Logo, o cosmos é nítida trança. “Em outras palavras, sempre que se tenta pentear uma bola cabeluda, haverá pelo menos um redemoinho de cabelo em algum lugar.” pensou a matemática antes de dever devir.]

Pré-esteticamente, se permitindo pentear os cabelos simultaneamente co-rompidos dos vários movimentos pós-literários de sua época, um parágrafo inteiro decidiu fazer um apelo a todos os olhos que por ali passassem para que o lessem. Mas como se tratava de um genre-fluid, um verdadeiro glitch hermenêutico se manifestando a olho nu, não havia simplesmente nenhum sistema capaz de entendê-lo em toda a sua insignificante significância. (Códigos linguísticos múltiplos se confundem para que se os decifre. Ler é reler meus olhos de encontro aos teus.)

Mas não foram só os olhos que responderam ao apelo. Os sentidos, ressentidos de tanta confusão metassensivelmente ininteligível, se puseram a avaliar e valorizar o tal do gesto. Dando voz ao estranho gosto que (de alguma forma mística) os tocara, sentiu-se que a visão de um novo plano se formaria. Uma dimensão complexa multiplicou os entendimentos. Uma porta se abriu e uma sensação total tomou conta de todas as palavras e sentidos ali presentes.

Da impossível possibilidade de correspondência entre as palavras e as coisas, tanto as palavras quanto as coisas se deram conta de que não era só o rizoma literário que parecia internalizar a real arquitetura dos espaços exteriores, mas as próprias cidades materiais eram também irrestrita exteriorização das incorporeidades idealistas, num jogo imperfeito e dual de co-abstração de concretudes.




Abro os olhos. Estou em um cruzamento de enormes avenidas, palavras se cruzando. Híbridas. Me volto para a esquerda, um enorme edifício, saliente, me chama a atenção. Da janela do segundo andar vejo um par de olhos me percorrendo. Apesar das quebras de linha, esses olhos me perseguem. A cada letra. A cada espaço. Me lanço a toda velocidade, buscando acompanhar o ritmo exato dos fluxos que me atravessam e não ser atropelado pela vertigem dos possíveis. Mas o olhar continua me seguindo. Resolvo parar. Encarar.

Voltando toda a atenção a esse olhar insistente, me deparo contigo, aí, diante de mim, num movimento curioso de entrelaçamento de ideias. Eu, saindo. Você, entrando. A partir de agora, nos tornamos indissociáveis. Entrelaçadas pela solidez da luz. Do zig-zag dos teus olhos brotam refrescantes referências. Rio. Palavras e imaginários escoam a partir do nosso encontro.

Eu, texto.





Você, pensamento.

Materialmente incompatíveis, historicamente agora, eletromagneticamente dança.


Literagonia
Poemas


1. Com puta dor

Ser ou não ser? Nenhum dos dois. Eu sou você. Nós somos também um cérebro, ligado por um texto antes têxtil, agora trança eletrônica.



2. Ecótonos

A palavra abre uma porta e escapa pr’além do ir além

Esgueira-se com outros vocábulos
Bem ali, naquele espaço vazio que
Ficou, interstício, despercebido até

Fresta das ideias que nos escapam
Quando pensávamos pensá-las em
Tempo. O pensar é também aquilo
Que nos escapou e que fervilha no
Vazio cheio de potenciais.
Chega ao limite do entre
Pela pele, pelos pelos, pelos poros, pelos próprios olhos
Alhures.
3. Encruzilhada

Eis-me aqui, diante dessas letras:
Conforme leio, elas me escrevem
Meus corpos tramas de todos nós
4. Diverso

Estou providenciando camelos para
Encontrar o oásis da tua mente
Loucura lúcida: quero verticalizar o horizonte,
Horizonte vertido
Em vértice, inverte-se
O inverso também é verso.
5. Temporal

Tou muito tu
Eu multo
Tu tumultuou tudo
Tomamos muito
Tu muito ar
Respiro

Ah! Se desse pra tumultuar o tempo eu voltava pra amanhã
Nessa dança temporal, tu muito mar
6. Configuração

Tá sozinho aí?
Tô contíguo!
Grávido de luz: serão fotos
Poesia imagética nascida de encontros
Nas zonas indisciplinadas das disciplinas

Produzir borrão-abertura nas bordas
Informação nas formas, informe-se!
Pontes obscenas entre saberes inconciliáveis
Furar bolhas
*Furo-futuro-poro-ponte*
Interações sem pré-requisitos
Sem requintes de inacesso
Peço encarecidamente que me encares
Me enxame de sentidos
todos os insetos do jardim compõem
miríade de figuras invisíveis
(indefinições
7. Dia dentro e logo fora

Espero impossível e inspiro necessário
Engulo concreto e cuspo abstrato
Disparo análise e trago síntese
Tropeço virtual e imagino real
Colo discreto e furo contínuo
Olho bolha e tranço labirinto
Costuro topo e refaço lógica
Jogo infinito e brinco limite
Opero nada e recupero algo
8. Zweisprachig

Onde transparente
Fosse inerte
Sorte de sentir

Transporte une atlas
aura eu
foi forte

Pire! (Que parte de subir?)

Limite urgente se lança
Entre agora
Et cetera

[Releiam em francês]
[Relisez-le en portugais]